Nascia um dia de inverno e Antero sonhava o dia que nascia. Sonhava-o dum modo estranho, que era o de viver a sua própria ausência. Viu-se no emprego ainda antes de chegar e surpreendeu comentários dos colegas, sobre o seu usual atraso às segundas-feiras. Impossibilitado de trabalhar assim sem existência, foi para casa e cruzou-se assustado consigo a caminho do trabalho. No prédio, duas vizinhas idosas escrutinavam esquivas o silêncio junto à sua porta, sussurrando em confirmação: “Só dormiu lá ele.” Estendeu-se no sofá, sonhando dentro do sonho as possibilidades deste revés de comparecer onde o acham distante: escutar opiniões limpas da censura de estar ali... Se ao menos conhecesse mais gente! Ficou assim muitas horas, relembrando ensejos extintos (a insólita luz de dia de trabalho percorrendo as paredes caseiras até se escoar como uma maré). O som da porta a abrir sobressaltou-o e viu-se regressar do emprego. Quis abandonar o sofá prestes a receber o corpo exausto, mas não pôde: presença e ausência iam coincidir ali e então. Dias depois, as duas senhoras idosas (de nariz sempre afinado e metediço) deram o alarme.
(Publicado na Minguante nº 5 dedicada ao tema "a ausência", sob o pseudónimo Carlos Tijolo.)