Até ao topo daquela colina

Sempre fui do tipo lobo-solitário, e ela é igual - deve ser por isso que a nossa relação “liga-desliga” funciona tão bem. É bem mais “desliga” do que “liga”, na verdade. No fundo é simples: ambos precisamos de muito tempo a sós para seguirmos as nossas respectivas vidas. E muito espaço individual! Territórios separados, por assim dizer. E porém, todos os anos, quando os dias começam a crescer e o calor do sol liberta no ar os cheiros das folhas e das flores, aí, subitamente, queremos estar juntos outra vez. E o nosso reencontro acontece sempre um pouco por acaso. O que acontece é que começamos ambos a vaguear pelos sítios onde nos encontrámos em anos anteriores. É um pequeno ritual nosso que ajuda a construir o desejo. Então, quando por fim nos avistamos num desses lugares fortuitos, os nossos corações disparam e corremos um para o outro. É nessa altura que noto as saudades que tinha de tudo nela: o olhar azul, a sabedoria, os movimentos bonitos… E parece sempre que voltámos a ser pequeninos: a correr e saltar pelos bosques lado a lado, aconchegados debaixo das estrelas à noite… Na última noite que passamos juntos todos os anos, sem falta, corremos até ao topo daquela colina que separa os nossos terrenos de caça e uivamos. Uivamos à lua cheia por muito tempo. É a nossa forma de fazer um acordo com ela, para que regresse outras doze vezes e nos faça continuar no coração um do outro.

(Contribuição para um desafio do Global Writing & Storytelling Group do Internations.)

O ferpume

Quão mal compreendida é a percepção dos odores... A Abel, então, jamais ocorrera debruçar-se sobre semelhante matéria. A respeito de cores, que não odores, tinha uma noção (memória de guaches nos tempos do liceu) de estas poderem dispôr-se num círculo, revelador de curiosas complementaridades. Azul-turquesa com amarelo-claro dava verde-limão, que é como quem diz o oposto de magenta – e assim infinitamente, para qualquer tom que apetecesse misturar no tempo em não havia coisas sérias para pensar. Mas nunca lhe ocorrera que também os cheiros pudessem traduzir-se em combinações duns quantos aromas primários; que até no olfacto se ocultassem oposições e quadraturas... Bom, pelo menos até hoje, em que desde manhã cedo tudo lhe cheira (com uma precisão de discernimento de que não se sabia capaz) ao contrário. E é a coberto da meia-noite – contrariado por uma repulsa que mais não é do que um reflexo aprendido, mas impelido por um jejum de muitas horas que o corrói – que se dirige às traseiras do prédio e abre o mais tentador contentor de lixo.

(Publicado na Veredas sob o pseudónimo Carlos Tijolo.)

Sou um pássaro agora

Dizem que estou doente, mas não creio. É preciso ter estado na minha pele nos últimos anos para entender como o meu comportamento é afinal bem racional. Uma rapariga farta-se de ser a eterna gorduchinha que nunca tem namorado. De jurar que até come pouco, mas todos acharem que empanzina às escondidas. Admito até uma certa obsessão com o peso, descuidos ocasionais, mas insisto: uma juventude como a minha e, a dada altura, a escala da balança mede fealdade em quilogramas e pouco mais.

Curioso não recordar ter vindo ontem para o hospital. Não gosto que me tragam para aqui. Sedam-me e aproveitam para me enfiar comida adentro por um tubo. Noto logo. Depois dão-me papinhas e vigiam-me. Volto para casa sempre gorda e feia, como antes. E contudo hoje há qualquer coisa diferente: o despertador tocou e senti-me leve como num sonho. Subi à balança ali ao canto e o ponteiro nem mexeu. Irrita-me é que o espelho não funcione. E o silvo contínuo deste despertador estúpido que não se cala... E esta gente de bata que irrompe pelo quarto adentro e me ignora – alguém me indica um espelho que funcione, por favor?

(Publicado sob o pseudónimo Carlos Tijolo na Veredas e também traduzido em Italiano por Stefano Valente.)

Disparate especular

O que há de bizarro neste episódio acontecido em 1803 é, sobretudo, a sua natureza extraordinariamente simétrica.

Ana amava e sabia-se amada tanto por Carlos como por Manuel, irmãos gémeos até no segredo que cada um guardava sobre o seu amor por Ana. Não podendo escolher um e outro, à triste alma dividida sobrou a dor redobrada de rejeitar outro e um – com a inevitável consequência de lançar luz sobre aquele equívoco fraternal... Ora essa luz cegou Carlos a tal ponto que, acto contínuo, quis “exigir satisfação” ao irmão. A caminho desse propósito amargo, encontrou na rua um Manuel ofuscado pela mesma luz e a ponto igual. Sem palavra, duas luvas direitas escarraram o chão.

Cedo e fria chegou a manhã combinada: junto ao cemitério, foram seis os passos divergentes (e dados com raiva) que precederam o estrépito duplamente assustador de disparos simultâneos. Sob uma revoada de pássaros sobressaltados, dois rostos de espanto lívido fitaram-se mutuamente. Cada irmão teve então o mesmo reflexo de utilizar a força que lhe restava nos joelhos para retroceder tropegamente ao ponto de partida. A confirmação quase impossível ali jazia na relva: duas balas ainda quentes, amalgamadas uma na outra.

(Publicado na Veredas sob o pseudónimo Carlos Tijolo.)

Teoria do absoluto

O fogo fraco ao canto da cabana projecta as seis sombras esguias da família de cócoras em roda no chão. Ao centro, a mãe deposita uma tigela grande cheia e os olhos de Abasi brilham. Espera a sua vez, antecipando o prazer da refeição no semblante já satisfeito dos irmãos mais velhos. Retira com os dedos uma porção generosa de pasta de farinha e feijão, usa o lábio inferior para a aparar da mão e então mastiga feliz à boca cheia. Hoje é dia de festa e, nas manhãs seguintes a dias destes, sabe bem acordar só quando é já dia quente. Em manhãs seguintes assim, os sonhos duram mais e acabam bem.

(Publicado na Veredas sob o pseudónimo Carlos Tijolo.)

A chicha

Quem visita o talho do Sr. Mamede não adivinha nas suas feições algo rudes um gosto pela leitura (muito menos uma relação de amor-ódio com os livros). Mas não é raro algum cliente mais erudito surpreender-se com citações memorizadas à vírgula, quase sempre interpostas no diálogo com refinada ironia. Se o cliente curioso, contudo, decide inquirir sobre a origem das passagens, aí o rosto do talhante endurece e o manejar das facas parece enfurecer-se um pouco. A resposta vem em tom de fecho de conversa: “Isso já não sei.”

É nos sábados à noite que o Sr. Mamede vem para o talho entreter-se com a safra do último périplo pelas livrarias. Serve-se do cutelo para eliminar capas e páginas iniciais (incluindo introduções e prefácios). Uma faca de desossar revela-se apropriada para remover o que resta das lombadas. Com a máquina de cortar fiambre, apara eventuais rodapés e cabeçalhos demasiado informativos. Copia então cuidadosamente o título de cada obra para a página que sobrou no topo, usando o lápis das contas. As “peças” assim preparadas e limpas de gordura vão para o frigorífico, onde permanecerão até que não reste memória da identidade dos autores.

(Publicado na Veredas sob o pseudónimo Carlos Tijolo.)

A arca de Ádila Sesimbra

Na varanda da Biblioteca Nacional, fumo um cigarro e as mãos tremem-me. A revoada de pensamentos que me castiga traz-me à memória a primeira ocasião em que, fascinado, ouvi falar de Ádila Sesimbra, nas aulas de Português do 9º grau. Nascida em 89, começou a escrever desde muito cedo e profusamente, mas foram poucas as coisas que se deu ao trabalho de tentar publicar. Quando morreu em 2036 (o seu delito assumido eram duas caixas diárias de bombons recheados), conheciam-se dela apenas dois ou três pequenos volumes de poesia – todavia mais do que suficientes para, no espaço de uma década, terem revelado ao país já órfão de si a estatura duma gigante literária. Em vida, mantivera uma relação de fidelidade recíproca com um velho computador portátil. Depressa, pois, a atenção da Biblioteca se virou para o disco duro enterrado nos fígados dessa peça de museu com teclas. Adquirido o dispositivo, haveria de calhar-me a mim (para renovado fascínio) a tarefa de meticulosamente recuperar e imprimir o seu precioso conteúdo. Que poderei argumentar em minha defesa? Ando sobrecarregado de trabalho, durmo mal. A Joana zangou-se comigo. Num lapso estremunhado e assassino, formatei o disco errado.

(Publicado na Veredas sob o pseudónimo Carlos Tijolo.)