A Página

Acredito na existência (algures, talvez fora do espaço físico) d’A Página, a maior aspiração de qualquer pessoa que escreva. É uma página interminável, sem linhas nem margens, onde repousa para sempre, rigorosamente, tudo o que de muito honesto alguma vez foi humanamente escrito.

Diz-se haver quem tenha lá santificado livros inteiros, como se diz que há lá simples frases e versos soltos, meras associações de palavras até! Bom, “meras” não, nunca: duas palavras escritas podem merecer o seu espaço n’A Página, mas então devem ter sido o que de mais sincero uma alma escreveu em toda a sua vida aqui na Terra. Duas palavras seguidas, registadas na mais pura contracção do coração, de entre os biliões que mantêm viva toda uma existência. Em certos casos não será, pois, descabido dizer que, paradoxalmente, obra publicada e extensa serviu ao autor tão-somente como treino para certo apontamento esquecido de diário que, esse sim, ganhou direito a jamais deixar de existir.

Ninguém sabe ao certo se se trata duma superfície plana e infinita ou duma superfície esférica, que são as duas únicas maneiras de Ela não ter margens e, ao mesmo tempo, ser uma superfície suave, sem vincos no papel imenso (uma forma toroidal seria por certo demasiado absurda para semelhante fim). A minha suposição pessoal (mas isto é especulação pura, roçando a heresia, perdoado me seja o atrevimento) é a de que se trata duma superfície esférica sem quaisquer espaços em branco. Então, sempre que alguma coisa nova ganha o direito a ser inscrita lá, abre-se o espaço novo necessário – o que leva a que aumente continuamente o diâmetro do já enorme globo e a que este vá tendendo para exibir a tal superfície plana e infinita (sem que porém alguma vez possa chegar a tanto).

E quem decide quais os livros, parágrafos, afinal quais as palavras que irão ter o seu lugar impresso nesta Página? Talvez não possa falar-se exactamente em “decisão”, ou pelo menos o meu entendimento não alcança Quem ou o Quê por último decide. Sei no entanto que as coisas começam da forma que passo a descrever.

O Conselho do Merecimento é constituído pelos espíritos de todos quantos já viram o seu esforço escritor humano imortalizado na superfície d’A Página. Este Conselho é convocado para a análise de cada espólio produzido em vida humana já extinta.

Todos os conselheiros e conselheiras se sentam à volta duma mesa também ela enorme, na forma duma circunferência (de raio necessariamente crescente; confesso que este corolário me inspirou a suposição sobre a geometria d’A Página propriamente dita). Portanto um estrado imenso de madeira que se fecha sobre si mesmo. Desconhece-se o processo, inquestionavelmente metafísico, pelo qual o único exemplar original da obra neófita consegue naquele momento desdobrar-se, multiplicar-se por tantos originais quantos os conselheiros existentes. Cada conselheiro recebe assim um original genuíno (qualquer que seja a sua constituição: plaquinhas de barro, manuscritos, impressões caseiras a jacto de tinta) e portanto infuso de todo o amor e raiva que lá tenham sido postos pelo autor nos próprios momentos de autoria.

Os conselheiros iniciam então a sua Tarefa, que pode demorar minutos, meses ou décadas do nosso tempo terreno. Cigarros, cigarrilhas e charutos, cachimbos acendem-se a toda a volta da mesa de trabalho. Empregados rigorosamente seleccionados, formados e fardados esvaziam cinzeiros com perícia e em silêncio, substituem bolsas de tabaco; quando solicitados, limpam cachimbos (há aqueles conselheiros que preferem limpar os próprios cachimbos), recolhem restos de cigarrilhas já esfumadas na tarefa de pensar. Sobre a circunferência da mesa do Conselho forma-se uma outra circunferência, esta de fumo, perfeitamente paralela e permanente.

Chegado o fim do esforço leitor e analítico do conselheiro que tenha demorado mais (infelizmente não terminam todos ao mesmo tempo, levando a que aconteçam grandes aborrecimentos e quezílias), podemos perceber quão insondável é o tal processo de “decisão” a que aludi. De facto, acontece apenas que, num momento, o último leitor arruma o último texto lido e, no momento seguinte, a mesa está vazia. Perfeitamente deserta de todos e de tudo. Nem os próprios conselheiros (agora outra vez livres) têm conhecimento do que aconteceu – se um par de palavras, ao menos, ganhou o espaço desejado n’A Página. Eles limitaram-se a ler, com o interesse mais genuíno que é possível ter, e só na convocatória seguinte poderão (se tiverem boa memória) perceber se efectivamente mais um se lhes juntou ao redor da mesa.

(Publicado na Letrário sob o pseudónimo Carlos Tijolo.)