Manhã emersa

Já em novo Douglas sonhava esse sonho, nem bom nem mau, normalmente à hora incerta da madrugada em que o sol ainda não saíra do fundo do mar. Agitando o sossego submerso, um cobertor vasto feito de algas e espongas desintegrava-se devagar, descobrindo o flanco de aço dum navio tombado no leito frio. Sentindo-se então, espantosamente, navio hibernado que acorda, Douglas ascendia rumo ao chamamento trémulo da aurora, até explodir simultâneo com o sol na respiração das ondas, numa festa de barcos ressuscitados e felizes buzinas navais.

É sempre bom sinal quando se conhece alguém e se desata a falar de sonhos. E assim foi numa festa de Páscoa, em que Maisie ouviu gulosamente aquele peculiar relato onírico e soltou uma gargalhada colorida: “Tu achas que as pessoas são como navios que afundam depois da infância!” Pouco introspectivo mas munido dum bom sentido prático, Douglas soube dar os passos necessários para desposar Maisie.

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Quarenta anos de vida em comum dão azo a curiosos sincronismos e, hoje, quando Maisie sonha esse sonho matinal em que aguarda qualquer coisa incerta frente ao mar, sabe que acordará sempre antes do fim, quando o braço semi-adormecido de Douglas lhe enlaçar a cintura.

(Lido por Luís Ene no programa de rádio Rua do Imaginário em Novembro de 2009 e publicado na Veredas em Outubro de 2010, sob o pseudónimo Carlos Tijolo.)