Quão mal compreendida é a percepção dos odores... A Abel, então, jamais ocorrera debruçar-se sobre semelhante matéria. A respeito de cores, que não odores, tinha uma noção (memória de guaches nos tempos do liceu) de estas poderem dispôr-se num círculo, revelador de curiosas complementaridades. Azul-turquesa com amarelo-claro dava verde-limão, que é como quem diz o oposto de magenta – e assim infinitamente, para qualquer tom que apetecesse misturar no tempo em que não havia coisas sérias para pensar. Mas nunca lhe ocorrera que também os cheiros pudessem traduzir-se em combinações duns quantos aromas primários; que até no olfacto se ocultassem oposições e quadraturas... Bom, pelo menos até hoje, em que desde manhã cedo tudo lhe cheira (com uma precisão de discernimento de que não se sabia capaz) ao contrário. E é a coberto da meia-noite – contrariado por uma repulsa que mais não é do que um reflexo aprendido, mas impelido por um jejum de muitas horas que o corrói – que se dirige às traseiras do prédio e abre o mais tentador contentor de lixo.
(Publicado na Veredas sob o pseudónimo Carlos Tijolo.)