Quem visita o talho do Sr. Mamede não adivinha nas suas feições algo rudes um gosto pela leitura (muito menos uma relação de amor-ódio com os livros). Mas não é raro algum cliente mais erudito surpreender-se com citações memorizadas à vírgula, quase sempre interpostas no diálogo com refinada ironia. Se o cliente curioso, contudo, decide inquirir sobre a origem das passagens, aí o rosto do talhante endurece e o manejar das facas parece enfurecer-se um pouco. A resposta vem em tom de fecho de conversa: “Isso já não sei.”
É nos sábados à noite que o Sr. Mamede vem para o talho entreter-se com a safra do último périplo pelas livrarias. Serve-se do cutelo para eliminar capas e páginas iniciais (incluindo introduções e prefácios). Uma faca de desossar revela-se apropriada para remover o que resta das lombadas. Com a máquina de cortar fiambre, apara eventuais rodapés e cabeçalhos demasiado informativos. Copia então cuidadosamente o título de cada obra para a página que sobrou no topo, usando o lápis das contas. As “peças” assim preparadas e limpas de gordura vão para o frigorífico, onde permanecerão até que não reste memória da identidade dos autores.
(Publicado na Veredas sob o pseudónimo Carlos Tijolo.)