O que há de bizarro neste episódio acontecido em 1803 é, sobretudo, a sua natureza extraordinariamente simétrica.
Ana amava e sabia-se amada tanto por Carlos como por Manuel, irmãos gémeos até no segredo que cada um guardava sobre o seu amor por Ana. Não podendo escolher um e outro, à triste alma dividida sobrou a dor redobrada de rejeitar outro e um – com a inevitável consequência de lançar luz sobre aquele equívoco fraternal... Ora essa luz cegou Carlos a tal ponto que, acto contínuo, quis “exigir satisfação” ao irmão. A caminho desse propósito amargo, encontrou na rua um Manuel ofuscado pela mesma luz e a ponto igual. Sem palavra, duas luvas direitas escarraram o chão.
Cedo e fria chegou a manhã combinada: junto ao cemitério, foram seis os passos divergentes (e dados com raiva) que precederam o estrépito duplamente assustador de disparos simultâneos. Sob uma revoada de pássaros sobressaltados, dois rostos de espanto lívido fitaram-se mutuamente. Cada irmão teve então o mesmo reflexo de utilizar a força que lhe restava nos joelhos para retroceder tropegamente ao ponto de partida. A confirmação quase impossível ali jazia na relva: duas balas ainda quentes, amalgamadas uma na outra.
(Publicado na Veredas sob o pseudónimo Carlos Tijolo.)