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Trabalhei neste caso durante o último ano e meio. Por vezes a par de outras matérias, é certo, mas, seja como for, há de facto muitas horas de trabalho por trás do dossier (quase um caixote de documentação) que agora encerro. É este o meu trabalho - passar meses a procurar, reunir e analisar informação sobre coisas que meia dúzia de pessoas muito importantes estão interessadas em que não interessem a mais ninguém.

Para no fim encaixotar uma pilha de papéis de que não existem cópias em sítio nenhum do mundo, uma pilha encimada por um relatório de conclusões (quando é possível chegar a elas) e cujo destino final é invariavelmente um compartimento numa caixa-forte subterrânea, muito subterrânea, verdadeiramente fora deste mundo. (Os relatórios públicos, aqueles que vão remediar as ansiedades dos familiares das vítimas e alimentar os noticiários, esses são outras pessoas que os fazem, bem mais rapidamente.)

Talvez seja por isso - por ver meses de trabalho árduo descerem às entranhas da Terra como se o meu relatório se destinasse, em última instância, a ser lido pelo demónio - que por vezes tenho necessidade de escrever umas linhas, para mim, numa folha que não tenha o timbre deste maldito departamento, uma folha em que possa escrever à mão. É absolutamente contrário às normas (poderia arruinar a minha carreira por fazer isto. Ou pior...), mas tomo as minhas precauções.

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Os primeiros factos significativos remetem para o ano de 88F. Nesse ano, recordo bem, teve início a utilização efectiva de úteros artificiais para gestação humana, em hospitais e maternidades (a par de uma polémica explosiva - de um lado, os defensores da libertação das mulheres do fardo da gravidez; no outro extremo, os opositores ferozes à "fabricação de crianças sem alma").

Paradoxalmente, em termos populacionais, o planeta rebentava pelas costuras. Apesar das funções que desempenho, uma das coisas mais chocantes de que guardo memória é bem pública: os atentados à bomba em maternidades, que aconteciam um pouco por todo o mundo, naquela altura.

Em parte, foi em homenagem ao advento da gestação artificial que o prof. Workbone - coordenador do mais ambicioso projecto de colonização do sistema solar desde sempre - baptizou como Utero a primeira frota de naves que partiram rumo ao sector 3 de Marte.

Numa viagem que ia durar quase um ano, a instalação da monotonia a bordo das naves era um perigo bem real, a prevenir a todo o custo. Foi então estabelecido que todos os tripulantes e passageiros gastariam uma parte do seu período diário de vigília ligados às chamadas "consolas de realidade alternativa".

Basicamente, as pessoas reclinavam-se em cadeiras cuja extrema ergonomia compensava de algum modo o desconforto inicial de se ficar com a cabeça fixada num complexo sistema de pequenos tornos, impeditivos do mais pequeno movimento.

Depois de alguns segundos (que a máquina levava para determinar uma infinidade de coordenadas cerebrais), o indivíduo sentia um zumbido e mergulhava noutro mundo. Um mundo incrivelmente real, mas bem mais estimulante do que o universo asséptico da nave, claustrofóbico e isento de imprevistos.

Grande parte dos passageiros escolhia um determinado cenário, paradisíaco, cuja programação fora inspirada em ilhas do Pacífico Sul tal como +eram até há uns duzentos anos atrás. Cada pessoa ligada à sua consola, podiam viver todas em conjunto momentos verdadeiramente felizes, em praias orladas de coqueiros como jamais iriam encontrar no sector 3 de Marte.

A esmagadora maioria dos viajantes consistia em casais de jovens, capazes da difícil decisão de, provavelmente, não mais voltarem a estar fisicamente com os seus familiares mais velhos, para partirem na expectativa de construirem uma vida agradável, longe, onde nunca alguém o arriscara.

Porém, Charon - que viajava só - era tripulante da nave Utero III. De facto, naquela altura eram ainda muito raras as pessoas com a formação adequada para a programação e manutenção das indispensáveis consolas virtuais (é errado supor que se tratasse de serviço para um mero engenheiro de sistemas - na verdade era necessária formação aprofundada em neurologia e em certas áreas da psiquiatria, a par do domínio perfeito dos aspectos tecnológicos).

Graças ao seu trabalho no próprio projecto de desenvolvimento das consolas (a que parece ter-se dedicado com paixão), Charon conseguiu ir para o espaço. Isto apesar de o seu celibato contrariar o perfil exigido a priori.

Aliás, posso agora afirmar com total certeza que as suas habilitações excepcionais eram a única característica que podia ter levado uma equipa de selecção, supostamente competente, a descurar os rigorosos exames psicológicos a que eram submetidos todos os candidatos, para colocar a bordo de uma nave de colonização aquela criatura taciturna e perfeitamente associal.

Num outro caixote à minha frente estão dezenas de discos ópticos que armazenam todos os dados informáticos relevantes para este caso, recuperados da rede interna da Utero III. Nele jaz uma espécie de diário electrónico que Charon mantinha no espaço.

Aparentemente, o objectivo último da sua vida era libertar o espírito de toda e qualquer influência humana exterior a si ("contaminação", como diz sempre) - alimentar-se exclusivamente das suas ideias, dos seus sentimentos, para chegar àquilo que acreditava ser o seu "verdadeiro eu".

Partir na viagem para Marte, atravessando o espaço fechado num veículo com apenas mais vinte e seis pessoas (que certamente evitava o mais possível), representava para si uma razoável redução do universo de influências externas.

Deixava para trás uma outra nave, essa sobrelotada com mais de vinte biliões de habitantes - ("Sempre que saía de casa, a massa eterna de gente nas ruas fazia-me perceber que seria impossível andar dez metros sem que mais uma parte de mim fosse irremediavelmente destruída.").

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Um dia antes da chegada a Marte, a Utero III perdeu o contacto via rádio com a nave principal. Nunca chegou a aterrar - passou a 300 Km de altitude e prosseguiu, voltando a mergulhar na escuridão do espaço. Durante vários anos, ninguém soube o que se tinha passado.

Finalmente, em 898/C, foi descoberto que a nave perdida descrevia uma órbita estacionária em torno de Io, uma das luas de Júpiter, não havendo indícios de vida a bordo. A equipa de astronautas que um mês depois entrou na Utero III não encontrou sinal de qualquer dos viajantes, excepto Charon, cujo cadáver jazia na ponte de comando, amputado de uma das pernas.

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Para alguém com os conhecimentos de Charon, não era tarefa particularmente difícil preparar as diversas consolas virtuais para que fossem capazes de sondar o subconsciente de quem repousasse adormecido nas superanatómicas cadeiras (o crânio firmemente preso por múltiplos tornos) de modo a executar um cenário que perfidamente reproduzisse os seus medos mais profundos.

(Havia suspeitas de que estas máquinas estivessem a ser usadas na Terra por certos organismos militares, com fins pouco humanos, fins coercivos - Talvez Charon soubesse mais acerca disto. Talvez eu saiba mais do que gostaria.)

O coração do comandante da Utero III parou quando, ligado à consola #B, ele sentiu ao pormenor uma fantástica centopeia com a largura de um braço entrar-lhe pela boca e devorar-lhe as entranhas.

Treze pessoas morreram assim, devoradas pelo seu próprio terror, enquanto as restantes treze dormiam e esperavam destino igual no turno seguinte. Naquele dia, assassinos e tubarões cheios de ódio passearam por praias do Pacífico Sul de há duzentos anos.

Ejectados depois para o espaço, os vinte e seis corpos iniciaram a sua jornada sem fim na direcção do Sol. Charon seguiu rumo à periferia do sistema solar, mas cerca de um ano e meio depois, passando perto de Júpiter, apaixonou-se pela lua Io e decidiu contorná-la eternamente.

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Durante todo este tempo, o que fez Charon? É difícil dizer ao certo. O diário termina pouco tempo depois dos seus crimes ("Renuncio a esta maldita linguagem que me implantaram no cérebro e no espírito").

Posteriormente, parece ter dedicado grande parte do seu tempo a desenvolver um universo pessoal de símbolos gráficos. Nenhum dos peritos em semiografia em quem deleguei a tarefa de os decifrar foi minimamente bem sucedido (muito raramente um determinado carácter surge mais do que uma dúzia de vezes, em todo o conjunto de milhares de páginas).

Há também muitos desenhos, com paisagens do espaço que passaram pelas escotilhas da nave durante a sua viagem até Júpiter, e um volume aproximadamente igual de representações da lua Io, progressivamente mais perfeitas, por vezes apresentando um dos estranhos símbolos de Charon gravado na superfície do astro, como um colossal emaranhado de canyons.

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Qualquer das naves Utero dispunha de bastas reservas alimentares, e reservas energéticas suficientes para um eventual regresso de emergência à Terra, que naturalmente não estava nos planos de Charon.

Ao abandonar as imediações de Marte, havia desligado todos os propulsores (necessários apenas quando se trata de cumprir uma rota curva, de aproximação a um objectivo) e deixara a nave seguir inerte até ao seu encontro perfeitamente fortuito com Júpiter - poupara assim, por certo, uma quantidade enorme de energia.

Mas fatalmente, um belo dia (quando já andava às voltas sobre Io há muito tempo), o seu sossego terá sido irremediavelmente perturbado por um súbito frenesi de luzes vermelhas e buzinas intermitentes, acompanhadas de uma voz digitalizada.

Este alarme terá durado doze horas, já que Charon desconhecia o código necessário para o desligar - deve ter tido tempo suficiente para recordar a língua que tanto se esforçara por esquecer, e perceber que as palavras digitais lhe diziam repetidamente que, dentro de 72 horas, todos os sistemas eléctricos da nave seriam desactivados, por esgotamento energético.

Em pouco tempo, reservas de carne e peixe que chegariam para toda uma vida apodreciam lentamente na gigantesca câmara frigorífica agora desactivada. Eventualmente, a falta de proteínas ter-se-á tornado biologicamente insuportável para Charon, que, apesar da evidência da inevitabilidade do seu fim, tomou ainda uma derradeira e drástica decisão.

Amputar a própria perna esquerda deve ter exigido realmente muito sangue frio. Consumi-la crua, não terá sido muito mais fácil.

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Enquanto o Sol se põe, acentuando o recorte agreste das montanhas vermelhas no horizonte, observo pela última vez uma fotografia da cara sem sexo desta estranha criatura. Imagino o enorme útero metálico, girando no espaço, que foi afinal o seu caixão.

Sector 3, D. D., 89A/2/IC

(Publicado no DN Jovem sob o pseudónimo Carlos Malha, em Junho de 1997.)