O ogre alquimista

Abel sonhava. Era um hoplita grego a caminho da beira-mar, para os exercícios matinais da sua unidade. Ao longe, miúdos nus terminavam uma sessão de ginástica e apressavam-se a apagar da areia quaisquer marcas susceptíveis de perturbar os homens adultos. Como sempre, a fantasia secreta de Abel era um rapazinho que, disfarçadamente, voltava a sentar-se na areia mesmo antes de correr atrás dos colegas. Subitamente, uma cãibra no braço musculado, dissolvendo o sono raso e aquela praia de há vinte e cinco séculos – e novamente a enfermaria, o cheiro a éter, a dor libertando-se da anestesia no braço gordo. Pelos anos fora, perguntara-se muitas vezes se teria apenas nascido numa época demasiado infeliz para a cor bizarra dos seus desejos. Então certo dia visitara-o na cadeia um homem novo, de feições delicadas e vagamente familiares, o qual lhe falara sem ódio mas usando amiúde uma palavra, essa, agudamente familiar a Abel. O seu próprio inferno, sabia-o desde esse reencontro, só lhe dera descanso nos instantes ferozes em que o semeara dentro de alguém. E daí a decisão por aquele implante enterrado na carne – semeando nada dentro de si, ventania sonolenta varrendo frágeis desenhos de areia.

(Publicado sob o pseudónimo Carlos Tijolo na Minguante nº 11 dedicada ao tema "o desejo" e destacado por José Mário Silva no Bibliotecário de Babel.)