O Fado Morgado

Mais uma vez, a semana de trabalho de José Morgado acaba tarde. No ecrã do computador, o relatório de contas regressa a uma pasta amarela e o sistema operativo avisa que vai dormir. Ao lado, a pequena moldura com o retrato da filha recorda-lhe que não passarão juntos este fim-de-semana; ela faz anos no domingo e haverá festa em casa da mãe. Os olhos aguam enquanto o polegar acaricia a bochecha rosada sob o vidro ("Dez anos, leguminho!"). Sob a moldura, a prenda há muito escolhida: um exemplar d'A Fada Oriana que irá por certo ajudar a menina rosada da foto a compreender certas coisas essenciais.

Mas hoje é sexta-feira e, dez andares abaixo, a cidade acende-se e convida. Elevador, átrio, "Bom fim-de-semana, Sr. Ferreira," "Para si também, Dr. Morgado." Madrugadas de sábado adentro, no bar Coco Peru, José gosta de aparecer em palco de costas para o público, sob os primeiros acordes de Maria Solidão e uma neve prateada de confetti. O vestido esguio como um vaso de ouro abre-se espinha abaixo num V estreito, orlado de tule em forma de asas de fada que as luzes quentes fazem de todas as cores.

(Publicado na Minguante nº 12 dedicada ao tema "fado", sob o pseudónimo Carlos Tijolo.)