Alfredo desperta de mais uma noite mal dormida. Usa o lavatório apenas para refrescar a cara com água morna e senta-se à secretária, ainda de pijama, para continuar o seu poema. Um poema inacabado, em que há várias semanas é incapaz de modificar uma letra que seja. Tudo por causa da mancha.
Como sempre, quando liga o computador e se prepara para trabalhar, tudo na secretária está arrumado e imaculamente limpo. Depois, à medida que se põe a reler os versos alinhados no ecrã, um desconforto periférico vai-se instalando, destruindo aos poucos a sua concentração. Ao fim de uns minutos, é-lhe inevitável dirigir o olhar para um ponto na superfície da mesa, do lado direito do monitor, onde surgiu do nada uma pequena mancha escura.
Esfrega a mancha com o dedo. Como de costume, não tem qualquer relevo ou textura. Dir-se-ia uma mera descoloração do tampo acrílico. Mas, sempre que Alfredo volta aos versos, sobretudo se prestes a premir uma tecla para fazer uma alteração, regressa devagarinho aquela comichão limítrofe. Até que um relance sobre a mesa confirma o receio: a mancha aumentou.
Ele já conhece bem este calvário. Nenhum dos muitos líquidos de limpeza que tentou tem qualquer efeito sobre a nódoa. A cada tentativa de concentração no poema, ela cresce. Ao fim de algumas iterações, a orla daquela pequena entidade obscura e demoníaca começa a ondular. E todos os dias acabam da mesma forma: os olhos derrotados e injectados de sangue pregados na mancha que, agora enorme, se desprende da mesa e flutua, trémula, no ar.
Exausto, Alfredo levanta-se da cadeira, atravessa a sala repleta de caixas de pizza, embalagens de hambúrguer e latas de cerveja usadas, num caos alicerçado em ninhos de aranha. Dirige-se ao quarto de banho, onde usa o lavatório castanho de tártaro apenas para bochechar brevemente com água morna. Sem nunca ter chegado a despir o pijama roto, regressa ao quarto, onde se deita entre os lençóis imundos para mais uma noite mal dormida.