Mais uma vez, Onélia começa o dia na creche acudindo a uma bulha entre Davidinho e Samirzinho. O pequeno David é novo ali e decidiu apoderar-se do tapete em que Samir mais gosta de brincar. Um atira ao outro, por entre baba, ranho e lágrimas, o adjectivo novo que aprendeu e compreende mal: “És infecto!”. O outro retribui o conceito com desdém redobrado: “Desinfecta daqui, moço!”.
Onélia procura compreender a possessividade de David e a ânsia que ele tem de defender um espaço seu. O rapaz já sofreu mais do que seria justo numa vida inteira. Aos quatro anos passou de um orfanato para uma família de acolhimento, mas não foi acolhimento que encontrou. Apanhava porrada de dois irmãos sádicos. Um dia, persuadiram-no a entrar na lareira da sala, trancaram-no e ligaram o gás.
Quando saiu de coma, David tinha uma família nova à espera, uma família adoptiva. E agora esta é a sua creche.
Mas voltemos ao tapete da discórdia. Nele há uma mesinha com alguns brinquedos. Um deles é um radiotelescópio que fascina ambos os miúdos. Onélia tenta usar isso como catalisador de uma trégua. Determina que Davidinho poderá ocupar o tapete, mas deverá respeitar que Samirzinho brinque numa faixa do tapete que tem uma cor diferente. Acima de tudo, ambos deverão partilhar a mesinha e os brinquedos que nela estão.
Inicialmente, o plano da educadora parece funcionar, mas, pouco a pouco, lamúrias e choraminguices voltam a emanar da zona de conflito. Ocupada com outras crianças, Onélia tenta monitorizar à distância o nível de zanga entre os dois miúdos e, por enquanto, tudo lhe parece sob controlo. De repente, porém, ecoa na sala uma exclamação. Segundos depois, um grito de dor e aflição.
Samir dera uma estalada a David. Este, sem hesitar, desembainhara um lápis afiado, que trouxera de casa dissimulado numa das meias, e arremessara-o com precisão treinada na direcção de Samir. O lápis atingira o olho direito do rapaz, com as piores consequências.
À saída do hospital, exausta, Onélia tenta imaginar os dois miúdos já adultos. Pondera se algum dia poderá desaparecer um rancor assim, aprendido quando os cérebros são ainda barro mole.
(Escrito para uma sessão da oficina Via do Medo, da Fábrica do Terror.)