Carta a médica de família

Cara Dr.ª Brízida,

Depreendi do seu e-mail que, certamente por intermédio de algum vizinho meu, recebeu novidades a meu respeito que a deixaram preocupada. Garanto-lhe que estou bem e passo a explicar-lhe a minha viagem interior, para que compreenda melhor as notícias que recebeu.

Como bem sabe, quando vamos a caminho de existir, há uma altura em que somos apenas uma bola de células. Uma bola, imagine-se! Perfeitamente simétrica em todos os planos. Mais adiante, o nosso embrião vai-se aperfeiçoando, descartando várias dessas simetrias. Passamos a ter uma parte da frente e uma parte de trás, uma parte de cima e outra de baixo. Porém, por clara insuficiência evolutiva, nunca chegamos a livrar-nos do horror que é a simetria lateral.

Na juventude, tentei disfarçar essa deformidade o melhor que pude. Socorri-me de roupas com uma só manga ou perna. Descobri depois as possibilidades capilares: meia-barba oposta a meia-cabeleira, uma sobrancelha a menos… O que me proporcionou maior alívio foi tatuar o braço esquerdo e a perna direita totalmente de negro. À noite, as montras das lojas (com os seus manequins grotescos) devolviam-me finalmente um reflexo suportável. Mas tudo isto era tão superficial… Meras tentativas de ilusão de óptica.

Nasceu então em mim o fascínio pelos grandes predadores. Via avidamente documentários sobre a vida animal. Nos melhores sonhos, dividia-me em dois: era simultaneamente o homem disforme e um tubarão ou crocodilo salvador. Com dentadas vigorosas e cirúrgicas, o bicho corrigia no humano o problema do braço supérfluo, da perna em excesso, remetendo esses apêndices para uma digestão sem regresso.

Demasiado cobarde e ignorante para a auto-amputação, procurei quem me proporcionasse esse serviço e, com alguma persistência, acabei por encontrar (na dark web, por um preço, tudo se encontra). Há pouco, quando abri o tupperware com o antebraço tatuado de negro rodeado de gelo, a primeira coisa que me ocorreu foi como vai ser difícil preparar um assado com uma só mão. Mas nenhum contratempo culinário vai estropiar a felicidade desta libertação.

Comprei já uma muleta e um recipiente adequadamente grande, para a próxima cirurgia.

Deste seu paciente que muito a estima,

Etiel Leite

(Escrito para uma sessão da oficina Via do Medo, da Fábrica do Terror.)